Piscar. Uma. Duas. Três vezes. Sentada. O braço vermelho de tanto coçar. Esperando alguém?
Lembrar, preciso lembrar. Do que? Não sei.
— Filha? Entra no carro, você vai se atrasar para a consulta.
Carro. Pessoa. Quem? Mãe? Entrar.Já fazem duas semanas que me sinto assim. Alheia? Não seria essa a palavra. Vale da estranheza. É o que mais se aproxima. Tudo parece normal, minhas lembranças, as pessoas ao redor, minha rotina.
Mas algo mudou e eu não sei exatamente o que, mas me incomoda. Como uma coceirinha no fundo da sua mente, repetindo, isso não é real, não é real. Eu não sou real. Porta fechada, carro andando.
— Mãe?
— Sim, querida?
– Aconteceu alguma coisa umas duas semanas atrás?
–…Não, amor, nada que eu me lembre — parecia forçado –Você está se sentindo bem?
Silêncio. Não está certo. Nada está certo.Consultório do hospital, sentada, perguntas. Isso é um sonho?
— Então você me disse que não tem se sentido você mesma…me fale mais.
— Parece um sonho tudo…um sonho. Não sei dizer, algo aconteceu e não me dizem.
— E tudo começou faz duas semanas? Se lembra de algo que possa ter acontecido?
— Não…mas sei que aconteceu, algo, importante, esqueço, mas preciso lembrar.
Esse incômodo que não passa, essa pele que não sou eu.
— Já foi ver essa coceira?
Pele vermelha de tanto coçar. Compulsão.
— Não, não consigo controlar. — Você tem sonhado?
— Sim, e não… É algo ruim e se repete, mas não sei o que é…Preciso lembrar, preciso lembrar.
— Está tudo bem, não se esforce tanto…Bem, vou te receitar algo para essa coceira e também para a ansiedade.
Receita em mãos, mais remédios…
–Pode chamar sua mãe? Gostaria de falar a sós com ela.
Do lado de fora, esqueceram a porta entreaberta. Levanto. Me aproximo e começo a ouvir.
— Uma rejeição? Não pode ser doutor…E os remédios?
— Eles ajudam até um ponto. Você devia contar a ela.
— Contar? Como posso contar se na primeira vez aquilo aconteceu?
— Ela era só uma criança, as emoções foram fortes demais. Agora ela entende, e é tão comum hoje em dia.
— Não, não posso me arriscar.
— Você sabe que ela vai se lembrar…ela tem tido sonhos recorrentes… é uma questão de tempo até ela se lembrar do acidente.
Acidente? Acidente. Acidente!
Corro pelo corredor, não sei para onde. Saída. Desço a escada correndo. Paro arfando. Não aguento mais. Desabo. E choro. Choro. Choro porque me lembrei. Do acidente. Farol vermelho. Farol de carro. E a dor, tanta dor.
E então o vazio.
Mas eu voltei.
Como? Por quê?
Porque não era eu.
Então entendo. A realidade dela eram meus sonhos. Memórias alimentadas desde o nascimento. Desde a criação.
Eu não sou eu. Eu sou um clone dela. Um corpo substituto. Devo viver ou morrer? Nunca estive viva de verdade para saber. Nada do que sei é real.
Um abraço.
— Filha? Você está bem? Me perdoa, me perdoa. — chorando — Eu não queria que você descobrisse desse jeito. — me embalando e chorando mais.
Olho para aquela mulher que ainda acredita que sou sua filha.
— Sim, mãe. Vai ficar tudo bem. — eu vou viver.
Sim, viver e encontrar outros como eu, porque sei que não estou sozinha.